Coluna Disputar a História é disputar memórias de Vitor Bomfim Lopes
Livro “Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano. Foto: Vitor Bomfim Lopes/ Arquivo pessoal.

Quando li Futebol ao Sol e à Sombra (1995) de Eduardo Galeano não pude deixar de reparar em uma coisa: enquanto Galeano evidenciava os problemas do futebol moderno, comecei a pensar na sala de aula. 

Pode parecer maluquice num primeiro momento – e talvez seja, – mas prometo esclarecer. Claro que essa comparação não vem de um simples devaneio. Perambulo por ambos os campos: os jogos, como torcedor, e as salas de aula, como professor de História. Mas o que exatamente vi de paralelo entre as duas coisas, além do impacto cultural do futebol em inúmeros alunos e alunas que muitas vezes estão doidos para que minha aula acabe e comece logo a Educação Física. 

Bom, Galeano abre seu livro com uma frase certeira: “a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever”. E em seguida explica o que quer dizer com isso: “A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia” – e estou citando de um livro publicado em 1995, tenho dó só de imaginar o que Galeano estaria escrevendo nos dias atuais sobre o futebol contemporâneo e toda a dinâmica de lucros exorbitantes acima de qualquer outra coisa, ou as discussões que deixaram de ser sobre quem joga mais bonito para serem todas sequestradas pelo fetiche de quem tem mais: os economistas teriam inveja de ouvir um debate sobre futebol atualmente. Tudo é número: ora, fulano joga melhor que ciclano porque ele tem mais títulos, mais gols, mais assistências, mais porcentagem de perigo de gol, mais chutes, custou mais caro. Só existe um caminho para o sucesso: a eficiência.o futebol, que em sua natureza é um esporte coletivo, das multidões, dos times memoráveis – o Expresso da Colina, o timaço do tri em 1970, a seleção de 1982, os galácticos dos anos 2000, – agora é o futebol do gênio em campo, daquele único possível de decidir. 

Veja, longe de ser contra o ídolo, ele sempre fez parte da dinâmica do futebol, ou melhor, ele é necessário “nesse espaço sagrado”. Mas antes, o ídolo fazia parte de um coletivo. O Ajax da década de 1970 do lendário Johan Cruyff ficou conhecido por jogar o futebol total; o Santos de Pelé era também o Santos de Zito, Coutinho e Pepe. O Botafogo de Garrincha tinha Nilton Santos, Zagallo, Manga e Didi ao seu lado. 

O ídolo não se fazia sozinho, ele era produto de um clube que jogava futebol com ele e para ele. Hoje, o ídolo dos campos parece mais a figura do gênio criado pelo Renascimento: fadado à solidão de ser o melhor, o único responsável pela sua destreza e eficiência; um lobo rodeado por cordeiros. Esses novos ídolos foram colocados num altar tão alto que encontram-se enclausurados numa torre de marfim que nem mesmo eles conseguem – se é que preferem – descer. Foi-se o tempo dos grandes times, agora temos alguns gênios dentro e fora de campo que podem (e devem) solucionar todos os problemas de um clube. 

Alguns técnicos também elevaram-se ao patamar de gênio; esse cargo que antes era chamado de treinador, mas numa sociedade ocidental tão racionalista e cientificista era preciso que o futebol deixasse amadorismos de lado e, então, nasce o técnico, aquele capaz de pensar o futebol através da razão e tática. evita-se a improvisação e controla-se a liberdade.mas assim como o jogador, na sociedade do imediatismo e da luta pela eficiência constante de todas as coisas, o técnico é tão descartável quanto um toca fitas. 

Todos estão correndo contra o tempo, para serem relevantes a cada instante no aqui e no agora. Tudo o que interessa é o presentismo. 

O perigo é evidente: se o presente acaba eclipsando as experiências e importâncias do passado, então dane-se a história. Ora, seu time não ganha um título a 10 anos? Então ele é irrelevante. Seu time é o maior campeão estadual, mas a última conquista foi há 6 anos atrás? Foi-se o tempo das glórias, então. Ouse dizer numa roda de conversas sobre o feito histórico do seu time na década de 1960 ou lá pelas bandas de 1920, é como se você tivesse contando uma piada ou, no melhor cenário, vão considerar aquilo uma curiosidade histórica qualquer que vão esquecer no caminho para casa naquela mesma noite. A eficiência não liga para o passado. E pior, nesse presentismo – esse mesmo, do François Hartog, – as experiências anteriores são tratadas com importância apenas quando vem a calhar na vivência imediata. Isto é, lembram de glórias anteriores caso seja pertinente evidenciar os números de tal time ou de tal jogador. Então, quando o passado é ignorado dessa forma ou resgatado apenas com a função de potencializar uma conquista do presente, muito é perdido. 

É nesse imediatismo que a eficiência torna-se um problema: nesse cenário, o Ronaldinho Gaúcho pode não ter sido tão craque de bola como dizem, já que ele só ganhou uma Liga dos Campeões e marcou só 309 gols na carreira; pouca coisa pra quem ganhou a alcunha de bruxo, né?!E a esquecível seleção de 1982 que não conquistou a Copa do Mundo? E aquele time do Real Madrid com Ronaldo Fenômeno, Roberto Carlos, David Beckham, Zidane, Figo e companhia que enquanto jogaram juntos não trouxeram sequer uma Liga dos Campeões pro time que mais venceu a competição? Tudo perde valor histórico e cultural. 

Se a lógica da eficiência constante e do presentismo impera no futebol, o passado torna-se uma caricatura de um futebol menor, menos importante. A história vai se apagando aos poucos, como uma foto a muito manchada pelo tempo. Falando em capitalismo, como qualquer seguimento terceiro-mundista desse sistema, o melhor está na importação, no distante e superior continente europeu. Se você que está lendo gosta de futebol, já ouviu o jargão tão repetido que custo acreditar que as pessoas que repetem isso compreendem do que estão falando: “o futebol europeu é o melhor que existe” – ou algumas variações desse jargão, como “a Premier League é o campeonato de maior alto nível”, “times europeus são superiores aos de qualquer outro continente”. 

A construção dessa ideia tornou-se tão potente que se transformou em senso comum. O imediatismo é o ceifador da historicidade.
Se o tal futebol europeu é tão superior, então quer dizer que o Campeonato Português também é muito melhor que o nosso? E o holandês também? Até mesmo o Campeonato Grego daria um chocolate nos times que ficam no G6 do Brasileirão? Veja, estou apenas elencando outros países europeus que também entram nesse bolo chamado “futebol europeu”, então, pela lógica do discurso, o futebol Sul-Americano não teria a menor chance contra o Dinamo Zagreb, maior vencedor do Campeonato Croata. 

Com todo respeito ao Dínamo Zagreb – me desculpando com os possíveis croatas que podem se deparar com este texto! –, o exemplo é apenas para demonstrar o quanto essa construção discursiva existe graças ao lobby existente aos grandes times e torneios europeus. O “nível técnico”, nesse caso, é o poder de compra de um time qualquer da Premier League capaz de bancar os maiores salários do mundo e construir, sem maiores problemas, um elenco competitivo. O “nível técnico” é a possibilidade de cobrir qualquer proposta por um moleque de 16/17 anos que foi artilheiro do estadual e do Brasileirão do ano passado. O dito nível técnico superior dos times europeus deixa de ser uma questão de dinheiro, capital, importação, sucateamento de outras regiões, vira-latismo, para tornar-se regra, característica inata da diferença entre Europa e o resto do mundo. 

A propaganda dá certo: se um jogador é bom por aqui, ele precisa jogar na Europa, onde o futebol é do mais alto nível. Da mesma forma que entregamos nossos estudantes mais brilhantes para as grandes universidades de fora por não termos condições e políticas suficientes para que esses estudantes se sintam seguros de praticar suas profissões por aqui. O que me leva a proposta do texto: onde se encaixa a educação nisso tudo? Bem, assim como o futebol, a educação está caminhando (a passos largos diga-se de passagem) à lógica da eficiência. A escola tornou-se um grande interclasse onde a competição é entre todos e todas. O ídolo do futebol? Aqui é esperado que todos sejam o melhor e mais eficiente aluno e aluna da turma. Condena-se o inútil; e o inútil é tudo aquilo que não dá resultados imediatos na realidade posta como alternativa única: o mercado de trabalho

Mas não é qualquer mercado de trabalho, pois a escola moderna renuncia a beleza das artes, atrofia a imaginação e proíbe o senso crítico. A utilidade está na mecanização do pensamento: sejamos práticos. É necessário apenas o mínimo para que os futuros trabalhadores saibam fazer as contas de divisão das parcelas de suas compras ou devolver o dinheiro no caixa. Com isso, é esperado que cada um seja o gênio no campo da vida; caso contrário, o problema não foi as instruções do técnico ou a má condição do gramado. O problema é exclusivamente do gênio! Os professores e professoras estão longe de serem residentes da torre de marfim – e este nem é o ponto e nunca deve ser o destino da profissão, – pelo contrário, são descartados como qualquer técnico que teve uma sequência de maus resultados. Pior, na Tecnocracia da Ordem, os professores e professoras são apenas ferramentas secundárias do ensino mecanizado e pronto. Aqui no Paraná, grande antro do conservadorismo, professores e professoras vivem numa espécie de eterna coletiva de imprensa; explico: existe uma plataformização do ensino que, além de transformar as atividades em aula em paródias do Show do Milhão, sondam cada passo dado pelo docente em sala de aula. São inúmeras plataformas educacionais impostas – lembram dos livros de registros? Hoje ele se chama Registro de Classe Online (RCO), – e ainda são obrigados a incorporarem os slides prontos (feitos pelo Estado) em seus planos de aula. E se os professores são pegos não utilizando o material, são tratados como pecadores na Inquisição. Assim como os técnicos, os docentes, em sua gigantesca maioria, também trabalham na lógica do contrato. Fez besteira, adeus. Resultados insatisfatórios? A torcida já pega no pé e a diretoria acaba demitindo. Professor que não usa slides prontos e ousa dar um conteúdo diferente longe das plataformas? A diretoria faz vista grossa e, sem apoio da torcida, adeus cargo. 

E lá vamos nós aos números novamente. O clube com mais títulos possui mais investimento, certo? Pois, então, a escola com mais aprovados também recebe o maior investimento, né?! Nem sempre. A dinâmica é diferente. Aprovação não necessariamente significa maiores notas, que também não significa melhores colocações nos rankings das provas estaduais. Aí entra o pulo do gato: se as escolas públicas estão com resultados tão ruins, é preciso tomar medidas drásticas. Melhorar a condição de trabalho de professores, professoras, funcionários e funcionárias? Bobagem. Aumentar a contratação de novos servidores e servidores para auxiliar na possível defasagem estrutural da escola? Claro que não. A solução é: deixe que comprem as escolas! Genial! Assim como um clube de futebol fragilizado econômica e estruturalmente que recorre ao maravilhoso mundo das SAFs, a iniciativa privada também entra no mundo da educação com a promessa de melhorar cada aspecto falho na gestão anterior. 

Tudo em nome do imediatismo. A Tecnocracia da Ordem tritura tudo. Não mais se escuta o técnico/professor dizendo:

— Vamos jogar/estudar.

Agora se diz:

— Vamos trabalhar.


Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.