1968.
No Brasil, era o quarto ano seguido de ditadura empresarial-militar. A massa popular brasileira, em meio à brutalidade e assassinatos de inocentes por parte dos militares, vai às ruas — greves pipocam por vários lugares; passeatas encorajam manifestações — em busca de algum tipo de justiça por todas e todos que foram mortos, torturados, trancafiados.
É também o quarto ano da guerra americana no Vietnã. A invasão estadunidense no território asiático abre feridas dia após dia com armas químicas e bombardeios sistemáticos. Uma guerra que busca ferir o espírito vietnamita, impossibilitando uma realidade outra — uma alternativa ao capitalismo. Para a infelicidade dos estadunidenses, em 1968, a alternativa vinga-se: acontece a Ofensiva do Tet.
Enquanto o imperialismo estadunidense caçava suas vítimas pelo mundo, em seu território, na cidade de Memphis, mataram um homem que sonhava. Martin Luther King morre nas mãos de James Earl Ray, ajudado por policiais, comprado pelo governo e armado pelo exército. Claro, no país da segregação racial, não basta enviar jovens negros ao Vietnã para morrer pela íntegra liberdade e pela defesa do american way, é preciso silenciar as vozes, as experiências e as vidas dos que afrontam o estilo americano pela mera existência de ser — três anos antes, foi Malcolm X; um ano depois seria a vez de Fred Hampton e muitos outros e outras Panteras Negras.
Todavia, não existe passividade na politização criada por Malcolm X e companhia: os Panteras Negras tomaram as ruas e transformam espaços marginalizados em comunidades com acesso a água, comida e educação.
Por todos os lados, da China ao Vietnã, da organização urbana estadunidense às ruas europeias, dos movimentos estudantis latino-americanos a vitória cubana, escancarou-se um mito: o capitalismo como alternativa imutável, incólume.
Em maio, o potencial revolucionário na França parece atingir o seu auge: nas ruas parisienses, entre protestos estudantis, barricadas e greves da classe operária. Espalha-se por praticamente toda a Europa a manifestação de mudanças, ou pelo menos a vontade de mudar o que está posto.
O status quo estremece.
Ao perceber que o capitalismo enclausura o corpo e a alma, muitos movimentos buscaram libertar-se: é a década de grande força da causa LGBT, exigindo serem reconhecidos como seres humanos; é a década da pílula anticoncepcional, capaz de fortalecer o direito ao corpo das mulheres; é a década dos hippies e da libertação sexual; a década da psicodelia. E 1968 é seu marco fundamental.
Do epicentro francês, a esperança iluminou inúmeros cantos do velho continente. Mas, em alguns lugares, essa luz não chegou.
Birmingham não vislumbrou o clarão pulsante das novidades retóricas e simbólicas. Talvez a fumaça das grandes indústrias não permitiu com que os raios de luz chegassem até as ruas da pequena cidade fabril inglesa. Talvez as dificuldades cotidianas eram mais urgentes do que olhar para o céu ou sentir nos ventos os novos ares que permearam o Reino Unido naquele momento.
No subterrâneo de maio de 1968 viviam quatro trabalhadores ingleses: John Michael “Ozzy” Osbourne, um metalúrgico com fama de temperamento forte que dificilmente parava num emprego; William “Bill” Ward, que trabalhava com carregamento de carvão; Terence “Geezer” Butler, aprendiz num escritório, treinando para ser contador; e Anthony “Tony” Iommi, operário fabril.
Em Birmingham, a alternativa capitalista era a única possível, ou seja, é preciso trabalhar para viver. Distantes da psicodelia londrina, das cores vibrantes dos hippies, os quatro trabalhadores engoliam frustrações e fumaça. Distantes do otimismo por mudanças, de vitórias simbólicas, a dura materialidade e derrotas concretas instigaram esses quatro moleques da juventude operária a fazer barulho.
Negaram o otimismo e a ingenuidade; o Black Sabbath escolheu a violência.
Uma violência direcionada: a revolta seria contra a realidade (im)posta a todos e todas enclausurados na continuidade da revolução industrial; contra o tempo como controlador de mentes e corpos; contra demagogias e aforismos; contra o otimismo de uma vida sofrida.
Só quem está à margem poderia ter visto que 1968 perdeu seu potencial revolucionário pela tentativa de dialogar com um sorriso no rosto.
A proposta de Black Sabbath é outra: não há diálogo; não há bondade. A reação com o sistema que o faz cair é a reciprocidade: é preciso fazê-lo cair com a mesma violência.
Inspirados pelo genial Mario Bava, o terror seria um aliado: no nome, nas letras, na sonoridade. O medo seria a expressão da revolta acumulada. Nesse cenário, a quem recorrer para juntar forças? Ora, que tal… o diabo?
Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,
Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,
E que, vencido, sempre te ergues mais brutal,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Se no epicentro parisiense surgiu a esperança de um futuro melhor; no epicentro da industrialização no interior britânico surgiu o medo da continuidade do presente.
Os quatro integrantes do Black Sabbath transformaram-se arautos da decadência do sistema violento, das vivências cruas que sofrem violências constantes no corpo e na alma. As próprias vivências feridas pela forma febril da lógica fabril — difícil deixar de falar do acidente de trabalho de Iommi que o fez perder duas pontas dos dedos enquanto trabalhava em chapas metálicas, aos 17 anos de idade.
O som ocultista é um lembrete do pesadelo constante da sobrevivência no contexto em que viviam. Se Malcolm X uma vez disse que não existe sonho americano, apenas o pesadelo americano, é no som do Sabbath que esse pesadelo se reverbera.
Não que Black Sabbath tenha sido uma banda revolucionária no sentido de ação política. Nem mesmo acredito que a banda pode ser considerada anti-utópica.
Black Sabbath é utopia pura — sem a cafonice interpretativa que o pós-modernismo cunhou ao termo, mas aqui a utopia é um caminho a ser projetado como possibilidade.
Sem a possibilidade de se projetarem num cenário onde seriam ouvidos pelo barulho incômodo do seu downer rock, não existiria Black Sabbath.
Foi preciso buscar na escuridão da marginalidade uma alternativa de mundo contra a claridade que cegava.
Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.
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