Como minha avó vivia dizendo, existem poucas coisas melhores do que uma roda de conversa movida a chimarrão e causos. Era como um ritual. Até mesmo os relógios lá de casa erravam, mas nada era tão certo quanto o fato de que minha vó estaria em círculo com suas amigas para ver o movimento na rua (o mais próximo de um era a grama crescendo e os pássaros se acumulando nos fios de luz) enquanto o sol se punha. Cabelos grisalhos, ou artificialmente tingidos, adquirindo uma coloração dourada por conta dos últimos raios de luz. O aroma de erva-mate se misturando com perfumes doces e o cheiro de roupas guardadas. Pipoca doce presa por entre os dentes. E o ar vibrando ao som dos ditos causos.
A palavra causo sempre me colocou numa posição confusa, afinal, o que é um causo? Fofocas? Lendas? Parábolas quase religiosas? Assuntos cotidianos? Uma conversa sobre o clima?
Acho que parte da beleza da vida está em aceitar que nem tudo precisa ser esmiuçado aos mínimos detalhes. O que é um causo?, eu vivia perguntando.
Um causo é um causo, minha vó sempre respondia, são histórias que a vida dá e a gente conta.
No fim, acho que um causo é tudo que vale a pena ser contado. E o que vale a pena ser contado? Para a minha vó, tudo aquilo que causa espanto, estranhamento, risos ou comentários ácidos por dentre os dentes. O ato de contar um causo é uma ode à vida. Uma forma de honrar e lembrar do simples gesto de estar vivo. Causos são vivos. Eles se esgueiram em rodas de conversa. Acompanham seus integrantes. Se embrenham em outras conversas. Mudam de forma e tom. E no fim, ninguém sabe o que é um causo, ou de onde eles vieram.
Essa criação me fez ficar obcecado por causos, lendas, mitos, crenças, histórias de ninar e tudo que possa ser abarcado nessa lista. Depois de um tempo, entendi que um causo é, de alguma forma, folclore em sua pura essência. No entanto, tudo isso é válido para Cascavel, de onde eu vim.
Quanto aos causos de Ponta Grossa? Bom, ainda estou descobrindo. Tenha esse texto como um diário de campo dos causos que encontro por aqui. De onde eles vieram? Qual a finalidade deles? Veracidade? Não sei se essas são as informações que importam, afinal, quando você voltar a consultá-los, provavelmente já vão ter se alterado.
Cobra Grande… Mais uma?
Reza a lenda, toda boa história contada por um senhor, de camisa xadrez abotoada do jeito errado e com o papo vermelho por conta do álcool, começa assim…
Reza a lenda que nos cafundó do arenito em que a cidade foi construída, onde aquela bendita pomba resolveu aterrisar há mais de 200 anos, existe uma cobra. Tão. Tão. Tão grande que podia comer nóis sem nem mascar.
Uma coisa que vim a descobrir? Toda cidade tem uma história de cobra gigante. Enraizada tão no fundo que alguns dizem que a serpente dorme na entrada para o inferno. Tão grande que suas escamas se espalham pelo subsolo de toda cidade, até os bairros mais afastados.
A cabeça dela fica bem abaixo da Catedral de Sant’Ana. É sempre abaixo da catedral da cidade. Ela tá mansa. Mais apagada que lamparina sem querosene. Mas, ora ela se mexe. Toda vez que ela respira um cadinho mais, que tenta uma posição melhor pra dormir, uma parte da cidade afunda.
O Cine Império sendo levado abaixo? Culpa da cobra. Todas as construções se rachando? É ela roncando, mais grave do que podemos ouvir, mas o bastante para a vibração causar pequenas fissuras no concreto.
Algum dia ela vai acordar, e aí tudo nós vamo afundar na terra. A cidade toda vai abaixo. Vai tudo nóis pro buraco.
João Maria
Ninguém sabe qual deles era, já existiram ao menos uns três ao longo dos anos, é assim que começa boa parte das histórias sobre o Monge João Maria, ou ao menos aquelas que eu ouvi. Uma figura misteriosa que é quase como uma entidade que se estendeu ao longo do tempo, trocando de corpo e morada. Essa é mais comum entre as senhoras católicas de olhos mansos e fala suave.
Ele passava de cidade em cidade. Já passou por União da Vitória. Pela Lapa. Por Ponta Grossa. Em cada lugar que ele ia, um causo começava. Em Ponta Grossa, ele foi pedir água a uma família, ou a uns moleques que estavam na rua, a história diverge. Mas, por seus trajes rústicos e aparência descuidada, a família se desfez de seu pedido e o apredrejou, ou o mandou preso, mais uma vez, encontramos aqui uma ramificação do causo.
O Monge jogou uma maldição na cidade, que nada ia pra frente nessa cidade e tudo aqui ia afundar, ou que nenhuma água seria encontrada em determinadas regiões, mais uma divergência pra conta.
Um pouco antes da maldição, tem um outro causo.
Ninguém sabe qual deles era, mais uma vez o começo clássico, mas São João Maria fez verter água de uma pedra lá em Uvaranas. Água benta. Quem se banhasse nela, curava tudo. Gente até de fora do Brasil vinha pra encostar o dedinho do pé que fosse no Olho D’água do monge.
Sendo um país que foi mergulhado na mitologia judaico-cristã, histórias de milagreiros como essa são parte fundamental do nosso folclore.
Era gente se confessando pra água, bebendo, tomando banho, sempre explica quem conta, a filha de fulaninha tinha um cobreiro no corpo todo, foi só se banhar na água do monge que as perebas tudo caíram igual escama.
Infelizmente, independentemente da eficácia médica ou religiosa, atualmente o Olho D’água está numa situação complicada, para dizer o mínimo. Quem estuda a área diz que a urbanização não mata o folclore, geralmente, mas pode ser que nesse caso tenha um fundo de verdade. A água agora é considerada imprópria para o consumo ou banho. De onde antes vinham os milagres, agora só se encontra lixo e detritos.
Ainda tem gente que tenta beber, mas não acho que vai fazer bem não, nesse caso, a sujeira deu um jeito de suprimir o mito.
No fim, entre essa e várias histórias, pouco importa se o Monge João Maria realizava feitos milagrosos e cobrava punições divinas. É inegável que alguém que tecia causos por onde passava, é o exemplo perfeito de história que a vida dá, e a gente conta.
Com edição e supervisão de Jessica Allana Grossi.
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