Menosprezo de cadáver: internet é terra sem lei e “Tio Paulo” é a prova

Texto de opinião da jornalista Maria Fernanda de Lima que escreve para a coluna "A cultura de violência sob novos olhares"

Menosprezo de cadáver: internet é terra sem lei e “Tio Paulo” é a prova

Levante a mão se você não riu de nenhum meme a respeito do “Tio Paulo” na última semana. O recente ato de desrespeito na cidade do Rio de Janeiro levanta questões sobre os limites éticos da era digital. O brasileiro com seu pequeno hábito de rir de tudo o que acontece se acostumou a zoar a dor mas, só se for devidamente protegido pelo perfil na internet.

Consenso geral sobre memes do Tio Paulo: piadas em público São repudiáveis, mas na internet tudo bem. Imagem: Print de tela / Maria Fernanda de Lima.

Aos 68 anos, Braga foi levado, já sem vida, a uma agência bancária em Bangu, na tarde da última terça-feira, no dia 16 de abril. Identificado como Paulo Roberto Braga, o homem chegou à agência em uma cadeira de rodas, acompanhado por Erika de Souza Vieira Nunes, 42 anos, que afirmou ser sua sobrinha, mas na verdade, como confirmaram as autoridades no dia 18, era sua prima.

O motivo desse ato mórbido foi a tentativa de obter um empréstimo de R$ 17 mil, cujo contrato foi assinado em março, mas o valor ainda não havia sido sacado. Um vídeo registrado pelos funcionários do banco mostra Erika segurando a mão inerte de Paulo, em uma tentativa chocante de simular sua assinatura.

O que se seguiu a esse caso foi ainda mais perturbador. Os memes sobre o “Tio Paulo” inundaram as redes sociais, tratando com desdém a morte e o cadáver do indivíduo. Os memes até atraíram a atenção da televisão, mas o humorista que tentou satirizar a situação  foi prontamente “cancelado” por todos. Na verdade, Porchat estava apenas simplesmente imitando tudo o que vem sido compartilhado na internet nos últimos dias. A diferença é  que fez isso de forma ao vivo, em  um espaço onde ainda espera a ética, diferente da internet, a nossa famigerada terra sem lei. 

É notável que a internet se tornou um espaço sem limites, onde o “humor” não tem limites. O caso virou reportagem da Lupa neste dia 19. Pois, enquanto indivíduos se escondem atrás do anonimato para criar memes, qualquer tentativa de humor semelhante na televisão é prontamente censurada. A piada sobre o tio Paulo só é tolerada porque é anônima, enquanto que, presencialmente, é alvo de críticas severas.

Essa não é a primeira vez que a internet vitaliza a exposição de um cadáver em função de entretenimento. Em  2015 vídeos da autópsia do cantor Cristiano Araújo, falecido em acidente, dominaram a internet, ao ponto de o Google e o Facebook receberem uma liminar para retirar as imagens de circulação.

Além disso, o responsável pela divulgação de imagens dos cadáveres de Cristiano Araújo, Marília Mendonça, Gabriel Diniz, André Felipe Souza, foi preso em 2023, sentenciado a 10 anos de reclusão.

Nada disso intimida quem ri e faz memes dos cadáveres. Muitos parecem esquecer que por trás de tudo há amigos e familiares enlutados. Como se sentirão os entes queridos de Paulo ao verem sua memória sendo zombada? Enquanto os memes serão esquecidos (no máximo daqui a duas semanas quando aparecer outra bizarrice para divertir os internautas), a dor dos amigos, conhecidos e familiares persistirá, marcada pela maneira desrespeitosa com que seu ente querido foi utilizado, mesmo após sua partida.

Espera-se que a próxima manchete viral desvie o foco do julgamento público da internet, permitindo que Paulo descanse em paz. Até lá, sua memória continuará sendo saqueada, tanto pela mão da suposta sobrinha quanto pela “zoeira” da internet.


Maria Fernanda é jornalista formada pela UEPG e atua há cinco anos como Copywriter, já tendo passado por diversos segmentos do marketing. Estagiária em Letras, ela é também catequista voluntária e palestrante, aprovada pela Lei Paulo Gustavo com projeto de combate a desinformação. Tem também um conto publicado na Amazon e investe tempo pessoal na escrita independente de reportagens.