Zona de Interesse é um filme lançado em 2023 em Cannes, meses antes do ataque amplamente televisionado e noticiado do Hamas em território israelense.
Choque e terror vieram à tona na cobertura, os pobres israelenses, inofensivos, eram atacados pelos desalmados palestinos que, por capricho, decidiram invadir cidades israelenses à procura de civis para matar.
E nós observamos.
Depois do ataque veio a retaliação – se é que dá pra se dizer sobre retaliação de um país criado em cima de uma limpeza étnica que dura há décadas. E nós ainda observamos, mas dessa vez, como o ataque (ou como preferem dizer, a defesa) vem de Israel, o olhar é treinado para parecer uma ação necessária.
Não estão matando palestinos, estão matando coisas, terroristas, não estão destruindo escolas e hospitais, são ataques planejados no território onde os maldosos integrantes do Hamas estão escondidos.
É a única solução! A solução final.
Em Zona de Interesse existe um constante incômodo pela forma como o genocídio contra o povo judeu no período da Segunda Guerra Mundial é retratado: o terror da matança está em segundo plano; não somos atacados por imagens de corpos, sequer vemos os judeus nos campos de concentração. Tudo de mais importante e urgente está fora de foco. Somos obrigados a conviver com uma família de um oficial nazista de alta patente e presenciar todas as regalias que essa posição oferece a sua família e ao próprio nazista. Enquanto se pensa na extensão de um belo jardim, sobem fumaças ao fundo: o lembrete de que enquanto a banalidade ganha enfoque, milhares de pessoas propositalmente esquecidas e marginalizadas estão mortas – mas isso não merece nossa atenção.
Ora, vamos ver o que esta família têm para comentar sobre moda, ou a fartura da mesa na hora do almoço, vamos acompanhar as crianças brincando no jardim e a felicidade de ver o pai voltando do trabalho; afinal, não tem nada demais acontecendo, certo? Até escutamos barulhos de tiro, alguns gritos ecoam, mas esse é o som causado pelo progresso!
Não há com o que se importar. Vamos viver nossas vidas e esquecer os problemas que estão lá longe – mesmo que a casa dessa família de nazistas esteja dentro de um campo de concentração.
E claro, essa família tão bem estruturada, com um pai tão amoroso e uma mãe tão cuidadosa não seriam capazes de atrocidades, não é? Nós aprendemos que o vilanesco está nas expressões, na postura, na performance – tem até aqueles que acreditam que está na cor da pele e na condição material. Então, essa linda família heteronormativa europeia pode ser tudo, menos vilã.
O rotineiro, em alguns momentos do filme, é tão presente que até parece que o problema daqueles barulhos incômodos ao fundo já foi resolvido. É como se o filme sussurrasse pra gente “é bem melhor sem a fumaça e os gritos, não é?”
Mas a passividade do voyerismo nunca deixa de incomodar. Nós sabemos o que estão tentando esconder, os enquadramentos e a sonoridade da mise-en-scène constantemente nos faz lembrar do genocídio que está sendo mascarado diante de nossos olhos.
E nós observamos, mas nem sempre muito atentos.
Num dia é:
— Ei, olha esse tweet absurdo do Elon Musk; e esse do Trump, que patético!
No outro:
No mesmo dia, já existe outra notícia:
Mais tarde sai uma nova:
— Como assim você não viu que o Macron levou um tapa na cara da própria esposa?
E no Twitter sobem nos Trend Topics:
— O Macron deu um selinho na Janja? Oi?? Ah, é inteligência artificial, né?!
É tanta informação que o rotineiro torna-se os antolhos da nossa sociedade. É tanta superficialidade que acaba deixando tudo desgastado.
Nunca se documentou tanto os conflitos modernos. Desde a Guerra do Golfo de 1991, nós temos acesso a vídeos, jornalistas locais, correspondentes; enfim, tudo está ao nosso alcance com notícias, informações; ou melhor, tudo o que precisa ser mostrado conforme os interesses dos envolvidos.
A mídia ocidental conivente com o genocídio vende Israel como Jonathan Glazer mostra a família nazista. Netanyahu é o pai nazista, sempre trabalhando para oferecer o melhor aos seus. Já os palestinos, bem, eles ainda estão lá, né?! Pelo menos é o que podemos pensar, já que nem sempre o termo “palestino” é utilizado, preferem “terroristas”.
É um povo sem rosto como os judeus de Glazer em Zona de Interesse.
Assim como o diretor escolhe esconder as atrocidades feitas aos judeus em campos de concentração, existe na hegemonia do discurso ocidental o silenciamento sistemático de vozes que buscam denunciar as fumaças, os gritos e os tiroteios.
A Palestina precisa ser livre. A comparação com Zona de Interesse precisa ser, acima de tudo, do seu desfecho conhecido do período: a libertação de um povo marcado pelo preconceito e o genocídio.
Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.
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