Quando Macbeth mata Rei Duncan e desencadeia cada vez mais assassinatos e violências para se manter no poder, a culpa e a paranóia tornam-se parte da sombra do personagem. Macbeth está numa ruína prestes a perder o equilíbrio e dar cabo de sua finitude; e essa ruína chama-se moralidade. No fim, a tragédia anunciada se apresenta como desfecho: por profecia – ou justiça divina, se preferirem – Macbeth é morto, sem redenção. Sua tentativa de escapar do que fez é o que corrói sua alma; o poder impune coletou seu preço.
E o hedonismo desenfreado do jovem Dorian Gray, imaculado por seu retrato que carrega para si todo o cinismo, imoralidade e desprezo às pessoas, para onde o levou? Novamente aqui o trágico é o destino final do personagem: não há como fugir dos próprios atos horrendos, pois as Moiras tecem uma linha pegajosa e certeira. Dorian Gray acaba afogado em culpa, tentando destruir o que ele mesmo construiu.
Já a morte de Brás Cubas não é segredo. Não há tragédia aqui – pelo menos não para o personagem –, nem mesmo redenção. O que Brás Cubas nos evidencia é a falta de punição para um certo tipo de grupo social no Brasil. Vemos pelos olhos de quem enxerga por cima: a apatia moral da elite brasileira e a leveza de quem viveu pecados que são absolvidos pelos privilégios de sua casta. Ora, como o próprio diz “afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares”. Machado, brilhante como só ele, nos mostra em Brás Cubas a dinâmica entre um cínico homem da elite do século XIX e os problemas percebidos pelo cinismo embriagado daqueles que não sofrem suas consequências.
Onde quero chegar com isso? No ferimento ainda quente e com forte cheiro de ferro no ar que golpeou as veias do Brasil: a Anistia na Ditadura Empresarial-Militar. Mas o que Macbeth, Dorian Gray e Brás Cubas tem a ver com esse evento? Ora, nada! Mas também tudo.
Não há como falar da história dos militares no Brasil sem a impunidade como um mestre de cerimônias do circo dos horrores. Paranóias, assassinatos, imoralidade… Não, não é sobre os personagens trágicos da literatura, falo sobre os militares e seus atos rotineiros no que eles entendem como “fazer política” no Brasil ditatorial. Nessa tentativa de entender quem é quem, a Anistia é o destino fatal do Brasil, enquanto Brás Cubas abraça os militares e apenas contempla o que já fora feito. Não se chora pelo leite derramado, muito menos pelo sangue que já secou nas paredes e nas covas ilegais que brotaram da terra aos montes, como se os militares tivessem a fim de facilitar o campo de visão do Inferno para que demônios pudessem ter o privilégio de desfrutar das violências contra a população brasileira. Uma pena que Brás Cubas já nos deixou, ele iria adorar a elite brasileira do século XX. Talvez não houvesse tanto desconforto histórico e temporal, muito menos a estranheza de um português de tempos distintos, pois a linguagem do cinismo e da apatia ainda se faz presente na classe dominante assim como é certo o abrigo da poeira onde nada existe além do tempo.
A morte do Rei Duncan é o nosso 31 de março; o quadro de Dorian Gray é nossa censura; a Anistia é o perdão arrebatado antes da cura, de quem levou um tapa e deve aceitar a violência mesmo com o gosto de sangue dentro da boca cortada. A Anistia é o rompimento com as filhas de Nix: e nesse caso, não seriam apenas as Moiras afetadas pela impossibilidade de definir o rumo dos personagens, mas também Nêmese, amordaçada pelo perdão compulsório.
Na literatura, a tragédia é anunciadora do acerto de contas; como um guia, a tragédia leva todos para o encontro do destino final de todas as coisas. Seja com ou sem remorso, o fim é iminente. Quando as mágoas ainda frescas no âmago de nosso espírito são silenciadas e temos que engolir o choro soluçante de gerações e gerações de injustiças pela implacável Anistia que tenta apagar cada fragmento de dor e memória, o sentido do que vivemos é perdido. É como se para engolir o choro, nos dessem um copo cheio das águas do Rio Lete para esquecermos de quem fomos e, assim, esquecermos do que fizeram conosco.
O esquecimento é ferramenta de controle: não há justificativas, memórias, recordações. Assassinos e torturadores deixam de ter nome e rosto, tornam-se apenas fumaça impossível de se tocar. O Castelo, lá de Kafka, veio enclausurar também o Brasil quando se anistiou a violência institucional: as muralhas que ajudam a proteger aqueles que deveriam se acertar com Nêmese e com o povo brasileiro. O apagamento sistêmico da memória em nome da autoridade.
A ferida escorre sangue até hoje e, recentemente, o cheiro de presa quase abatida atiçou os herdeiros e herdeiras dos anistiados escondidos no castelo. A ordem de atacar veio do bobo da corte, daquele que ninguém levava a sério até ser elevado a Bobo e, quando alguns ainda riam, tornou-se uma espécie de Triboulet, profundamente ressentido e instigando violências e perversões. O rei a quem este bobo responde é o primogênito gerado na Ditadura; filho da classe dominante que, percebendo o quadro de perversões cada vez mais monstruoso e amedrontador, precisou destruí-lo e esconder-se no castelo do esquecimento.
Volta-se a falar de Anistia. Gritam nas ruas a volta da tragédia anunciada. Mas é preciso lembrar, não como Funes, o Memorioso, que faz da memória um aprisionamento do passado, mas da lembrança como potencializadora de nossas memórias. Memórias que permitem derrubar o castelo; que permite a continuidade do trabalho das Moiras e de Nêmese. Pois é preciso fazer com que eles paguem, com juros, o que nos devem: uma alternativa outra de ser e existir.
Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.
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