Quem não é visto não é lembrado

Coluna Disputar a História é disputar memórias de Vitor Bomfim Lopes

Esse meu primeiro texto aqui neste site é, digamos, uma breve apresentação e explicação do título que escolhi para a minha Coluna. Disputar a História é disputar memórias pode parecer uma simples frase que busca ter impacto – o que não deixa de ser verdade -, mas é mais do que apenas isso: é um posicionamento teórico-metodológico e social do fazer historiográfico.

Ora, disputa é algo que está presente na História e na historiografia desde seu comecinho como ciência e disciplina. É justamente com disputas que o campo da História se firma nas universidades européias no século XIX. Para se provar como ciência, os intelectuais desse período buscaram construir uma noção de verdade para a História, baseando-se em pressupostos como a Razão e o Progresso, fortemente influenciados pela separação construída do dito Mundo Medieval para o Mundo Moderno, onde a sociedade tornou-se iluminada pelo conhecimento, deixando as trevas trazidas pela superstição e pelo misticismo. Do pensamento aristotélico ao cartesianismo, o mundo científico era o mundo da razão pura e objetiva. Ou seja, a historiografia nasce arraigada em noções e ideias de cientificidade vindas das ciências da natureza e não das ciências humanas. 

Antes desse contexto histórico-social influenciado por autores como Kant e Descartes, onde a crítica e a razão seriam as forças motrizes da ciência, a História possuía traços característicos de sua criação como disciplina pelos gregos: em 63 a.C., Marco Túlio Cícero já evidenciava a Historia est Magistra Vitae – História como mestra da vida. Nesse sentido, a História era disciplinadora, pedagógica: os acontecimentos do passado deveriam ser entendidos como aprendizados para o futuro. A História seria uma linha entre erros e acertos, e o historiador um narrador imparcial do passado.

Os séculos XVII e XVIII foram decisivos para a Europa no que diz respeito à ciência, e é precisamente nesse período que os intelectuais europeus preocupados com a História começam a resgatá-la para os pressupostos científicos, rompendo, assim, com ideias como a de magistra vitae e a nietzscheniana, de uma história sem utilidade para a vida. Como definem Langlois & Seignobos, dois dos principais formuladores da Escola Metódica francesa, “A história nos faz compreender o presente, explicando-nos onde for possível, as origens do atual estado de coisas”. É aqui que as coisas começam a mudar definitivamente e temos os primeiros esboços da História como a conhecemos atualmente. 

É no decorrer do século XIX que a História alcança sua importância definidora na Europa, especialmente na França e na Alemanha. Aqui, já prestigiada e com o status de ciência, os historiadores ganharam uma função: legitimadores de Estados-Nações. Como François Dosse expõe em A história à prova do tempo: Da história em migalhas ao resgate do sentido, durante esse período uma grande sobreposição de consciência nacional e discurso historiográfico instituía as bases do fazer histórico, onde o historiador dispunha de uma missão patriótica. Buscava-se no discurso histórico a validação do sentimento nacional de uma população. Era a História responsável por constituir as raízes de um povo: o que era ser alemão? O que seria cultura francesa? Quais seriam as fronteiras legítimas da Itália? Perguntas como essas eram respondidas pelo discurso histórico. Discurso

Lembram da imparcialidade exigida pelos gregos? Ela ainda estava presente nesse contexto. As influências anteriores deixam suas cicatrizes. É Karl Marx o expoente crítico desse tipo de leitura histórica. Como o próprio evidencia: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” 

Ao se firmar como ciência a História havia se fechado em pressupostos bastante estanques: grosso modo, História significava grandes personagens, civilizações européias e, como fontes, documentos oficiais. Com a ideia de progresso enraizada em sua formulação, entendia-se a História como uma linha contínua entre o que foi e o que será – mais um fantasma assombrando. As fontes escritas possuíam uma autoridade inconteste e os fatos entendidos como módulos isolados: um dos maiores historiadores alemães, Ranke, considerado o “pai da História científica” têm uma frase bastante conhecida por nós historiadores e historiadoras: wie es eigentlich gewesen – “escrever a história como ela realmente foi”. Esse tipo de fazer historiográfico só vai mudar em meados de 1930, com a crítica da primeira geração de historiadores franceses da Escola de Annales às conjecturas positivistas.

Percebam a miríade de problemas que seguem a historicidade da História. Mas tem um ponto que quero focar e que foi o motivo dessa breve contextualização: a História é discurso, narrativa. Disputas. A História formula-se como ciência na Europa, é discutida por europeus, questionada por europeus, aceita por europeus. Os Estados-Nações que os historiadores legitimaram eram todos europeus. Existe um elo eurocentrado na historiografia. O tipo de pensar histórico que chegou e chega até os dias de hoje no âmbito escolar ainda bebe da fonte da historiografia eurocêntrica. O positivismo foi bastante forte aqui no Brasil – com quantos anos vocês descobriram que a nossa bandeira carrega uma frase positivista? 

A presença do positivismo no Brasil é mais uma forma de colonização do saber. Foram cinco países europeus disputando o território brasileiro durante toda a nossa história – e pós-1930 ainda tivemos que lidar com a influência predatória dos Estados Unidos, que continua existindo. Fomos invadidos por Portugal e, depois disso, França, Espanha, Inglaterra e Holanda disputaram núcleos de influência pelo Brasil. A colonização não se limita ao território, pelo contrário, ela é mais profunda do que isso: nossos corpos, nossa forma de pensar, agir e ser também foram colonizadas. 

As consequências são feridas abertas e mal estancadas. A classe dominante brasileira pensou o Brasil nos moldes europeus: do IHGB ao Paranismo, do Romantismo à Eugenia. Intelectuais construíram a ideia de nação, do cidadão brasileiro, e como qualquer construção, alguns entram e outros ficam de fora. 

Em um país que teve mais de 350 anos de escravização, políticas estatais que favoreciam e incentivaram a imigração européia, e, ainda, uma classe dominante vira-lata que foge da identidade latino-americana, quem vocês acham que ficaram de fora da dita “população brasileira”? Quem vocês acham que eram os verdadeiros brasileiros? 

Até mesmo quando os indígenas foram resgatados por esses intelectuais – influenciados pelo Romantismo -, a preocupação era em civilizá-los e torná-los classe trabalhadora: “[…] se forem bem tratados cumprindo-se fielmente as convenções, que com eles se fizerem; se forem docemente chamados a um comércio vantajoso e a uma comunicação civilizadora, teremos, senão nos que hoje existem habituados a sua vida nômade, ao menos em seus filhos e em seus netos, uma classe trabalhadora, que nos dispense a dos africanos”, dizia Januário Barbosa, o primeiro secretário-geral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1839. 

O que quero evidenciar com isso, é que se a História não for disputada, a classe dominante vai ditar o que é ser gente e o que é cultura de verdade. Se nada fizermos “também os mortos não estarão em segurança”,  pois são eles quem irão determinar o que deve ou não ser ouvido, assistido, comentado e ensinado. Nosso inimigo, a classe dominante, não perdoa nem mesmo os nossos mortos, como Walter Benjamin evidencia muito bem – lembram do comercial da Volkswagen que se utiliza de inteligência artificial para usar a imagem de Elis Regina? 

Em meus textos, a problemática estará centrada na disputa e na luta constante de salvaguardar aquelas e aqueles que historicamente e propositalmente foram ignorados. O não-dito é construído. Não há inocência na ação de intelectuais. 

A escravização, seja de indígenas e/ou de negros africanos, foi abertamente defendida pelo viés teleológico e científico. 

A História não é uma entidade imaterial neutra que tudo vê e que nos apresenta soluções. É construção ativa de saberes, é projeto. O perigo de deixá-la à mercê é evidente: ceder às classes dominantes como seu instrumento. Faço, portanto, o que Walter Benjamin propôs aos historiadores e historiadoras do materialismo histórico: uma história a contrapelo.

“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”


Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.