Leonardo Villar interpretando Zé-do-Burro em cena de O Pagador de Promessas
Recentemente assisti pela primeira vez a um dos maiores clássicos do cinema brasileiro, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte lançado em 1962. O filme é baseado em uma peça teatral homônima do romancista e dramaturgo Alfredo Dias Gomes – escrita em 1959 e encenada pela primeira vez em 1960. Foi em uma dessas encenações no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, que Anselmo deparou-se com a obra e, impactado com o que viu, demonstrou seu enorme interesse em adaptá-la para os cinemas. Um pouco relutante, Dias Gomes acabou aceitando a proposta – em 1995, no programa Roda Viva, Dias Gomes explicou sua incerteza da época: “É preciso entender que nós estávamos ainda em 1960, 1961, e o cinema brasileiro só tinha uma tradição que era a chanchada. O Anselmo Duarte que ia dirigir o filme, que vinha das chanchadas e tal. Então, para me garantir, digo: ‘bom, pelo menos eu vou mostrar a minha peça’. Tanto que o filme é a peça filmada; há duas ou três cenas fora, mas o resto, se você acompanhar, vai ver que é igualzinho quase, que era uma prova da minha insegurança com relação ao cinema.”
Então, em 1962, se concretizou a versão cinematográfica de O Pagador de Promessas. Na trama acompanhamos Zé-do-burro (Leonardo Villar), um humilde homem do campo que, ao ver seu melhor amigo, um burrico chamado Nicolau, ser atingido por um galho de árvore durante uma forte tempestade, recorre ao único local que possui a imagem da Santa à qual é devoto: um terreiro de candomblé com um altar para Iansã – orixá adorada especialmente no candomblé e na umbanda, e muito associada à Santa Bárbara, santa cristã. Lá, Zé-do-burro faz uma promessa: se o seu fiel amigo melhorasse dos ferimentos, ele levaria uma enorme cruz de madeira nas costas até a igreja de Santa Bárbara como forma de agradecimento. Com suas preces atendidas, Zé dá início a jornada, acompanhado de sua mulher, Rosa (Glória Menezes), do interior da Bahia em direção a capital Salvador, onde ergue-se a imponente Igreja de Santa Bárbara. Os dois chegam ao templo católico de madrugada, ouvindo pelo caminho risadas e comentários jocosos dos boêmios da cidade, que percebem em Zé e Rosa uma caricatura do atraso que acompanha as zonas rurais do país.
Pela manhã, com a abertura dos portões da igreja, os problemas começam realmente. É nesse momento que o filme evidencia uma de suas problemáticas centrais: o poder do discurso oficial e oficializante. Quando Zé consegue ter uma palavrinha com a autoridade religiosa da cidade, o padre Olavo (Dionísio Azevedo), e explica sua jornada até ali, o padre se demonstra risonho e compadecido com a situação do ingênuo interiorano, mas ao falar de sua prece à Iansã – que para Zé-do-burro é só mais uma aparência de Santa Bárbara -, o rosto se fecha e as portas da igreja também. Zé é tratado como blasfemo, ignorante, adorador do diabo. Padre Olavo nega o sincretismo religioso, dizendo que um terreiro de candomblé não é nada além de um local de adoradores do demônio e que não existe ligação nenhuma entre Santa Bárbara e Iansã. Confuso, Zé busca se explicar diante da ira do sacerdote cristão, evidenciando que para ele Iansã e Santa Bárbara “são a mesma coisa”. É claro que não são, a associação sincrética entre as duas surge a partir da violência cotidiana na realidade escravocrata brasileira, onde a igreja católica proibia todo tipo de expressão popular e religiosidade que não fosse a sua própria, a oficial. Assim, os negros e negras escravizados de diferentes nações da África encontraram formas de resistir ao discurso oficializante que negava a eles suas identidades, línguas e crenças. É dessa forma que o sincretismo (que, importante dizer, não ocorre apenas na religião, mas em diversas outras esferas da cultura, como demonstra Sérgio F. Ferretti) surge em sua forma máxima: como resistência. Com o fim da escravização, em 1888, o catolicismo que ainda era imposto como religião única e oficial foi utilizado como narrativa reconciliadora dos agora negros e negras livres, como comenta Berkenbrock:
É de observar também que a abolição não significou diretamente nenhuma melhoria imediata na vida dos então ex-escravos. Também não significou nenhuma mudança na estrutura de poder nem na estrutura agrária do país. À abolição seguiu uma total desorganização dos ex-escravos. (...) Uma nova organização precisa de pontos de referência. Esta possibilidade foi oferecida pela religião.
A recusa tempestuosa do padre Olavo possui sua historicidade: a igreja católica se apresenta desde o início da invasão portuguesa como discurso oficializante, religião única e pura. A colonização nunca é apenas territorial; o discurso teleológico é fundamental para que os colonizadores possam legitimar suas ações. No caso brasileiro, o catolicismo foi narrativa basilar para a escravização dos indígenas (e posteriormente sua recusa, buscando catequizá-los com as missões jesuíticas) e dos negros e negras em África. Padre Olavo representa o pensamento estrutural dessa instituição tão poderosa e deixa claro para Zé-do-burro a hierarquização existente entre o catolicismo e religiões outras ao negar o sincretismo de Iansã e Santa Bárbara: “essa confusão vem do tempo da escravidão. Os escravos africanos burlavam assim os senhores brancos, fingiam cultuar santos católicos quando na verdade estavam adorando seus próprios deuses. Não só Santa Bárbara, muitos santos foram vítimas dessa farsa”. O outro é o intruso, transgressor. Percebam na fala do padre como a igreja católica se apresenta como universal e o candomblé como embuste. Sendo assim, Zé não pode entrar na “casa de Deus” com sua cruz de madeira, pois a promessa foi feita em um terreiro onde cultuam “falsas divindades” e caso Zé-do-burro colocasse os pés para dentro da igreja, ela se tornaria local de “falsos ídolos pagãos; seria o fim da religião”.
Padre Olavo e Zé-do-burro representam duas formas de entender as sacralidades. O primeiro é um assíduo defensor da ideologia cristã, perpetua a intolerância e o autoritarismo da igreja católica perante o outro; o catolicismo é oficial e universal, o diferente é o outro, o errado. Zé-do-burro traz consigo as expressões populares que se formam no comportamento de homens e mulheres que possuem um comportamento e uma noção de mundo exterior aquilo pregado pela Igreja e pelo Estado. Um representa a cultura oficial e o outro a cultura popular e, como demonstra Bakhtin, as demarcações existentes entre ambas não são precisas, causando uma associação permanente e conflituosa entre elas.
Desolado, mas ainda com esperanças de que consiga cumprir sua promessa, Zé começa a se transformar em uma espécie de celebridade na cidade. Com a notícia se espalhando, Zé-do-burro ganha a simpatia das pessoas que fazem parte do candomblé e algumas Ialorixás chegam a convidá-lo para levar a cruz até o terreiro de Mãe Menininha – o que Zé recusa, afinal sua promessa foi para Santa Bárbara e não se pode enganar os santos, pois “se a gente embrulha o santo, perde o crédito”. Diante da comoção popular, entra em cena uma outra instituição capaz de legitimar discursos e narrativas: a imprensa.
Cena do filme que mostra o encontro entre Zé e sua esposa, Rosa, com a imprensa local
O periódico encarregado de cobrir esse embate sócio-cultural dá ao seu repórter (Othon Bastos) – que não possui outro nome além de sua profissão – uma única missão: transformar o acontecimento em espetáculo digno de ser vendido.
A falta de um nome próprio para o repórter já evidencia o caráter unidimensional que a obra busca conceder à imprensa: aqui, os periódicos são espaços de espetacularização do cotidiano. No primeiro encontro com o repórter do jornal, Zé-do-burro é questionado sobre sua origem e, ao dizer que divide sua fazenda com outras família, é interpelado a responder se é favorável a reforma agrária. Sem saber o que isso significa, o jornalista explica, “é o que o senhor acaba de fazer com o seu sítio” e de prontidão Zé responde, “e não tô arrependido, moço!”. Pronto, para o periódico isso é o bastante para construir um herói marginalizado. O jornalista compra a briga de Zé-do-burro contra o Padre Olavo em nome do jornal, mas sem antes pedir em troca o seu apoio na campanha eleitoral do candidato favorito da imprensa. Com a história publicada, observamos camadas sociais reconhecendo Zé-do-burro como um “camarada” – assim o chama um capoeirista que acabara de ler o jornal.
Zé tem sua trajetória legitimada pela imprensa, torna-se protagonista injustiçado pelo poder da igreja católica. De um lado temos a imponente autoridade religiosa que emana do Padre Olavo e de outros párocos, do outro Zé-do-burro que agora representa os excluídos dessa narrativa oficial e oficializante. Ao seu lado está um agente poderoso, a imprensa, que após publicar a história de Zé eleva o nível de sua ameaça: antes era apenas um ignorante do interior da Bahia causando uma pequena dor de cabeça ao Padre Olavo; agora ele é um rebelde que defende abertamente causas populares com o apoio de camadas social, política e culturalmente marginalizadas.
Ora, em um contexto como este, é comum que mecanismos de poder se juntem para derrubar um inimigo em comum. Neste caso, igreja e polícia ficam lado a lado a fim de silenciar o agora escandaloso Zé-do-burro. Não há mais diálogo e nem salvação, Zé agora é tido como um subversivo, agitador.
No fim, a indignação de Zé-do-burro o leva a morte pelas mãos da polícia – uma ação legitimada pela igreja católica. Morre mais uma pessoa que não se conforma com a indiferença do discurso oficial. Mais um “Zé” morto pelo rolo compressor estruturado para destruir tudo aquilo que é diferente e que foge do controle vigente. Nosso Zé não tinha identidade própria, era Zé-do-burro. Sozinho ele não pôde nada: não amoleceu os duros corações dos sacerdotes católicos, muito menos os policiais constantemente sedentos por sangue. Mas depois de assassinado, depois de se tornar mártir, Zé é carregado com sua cruz de madeira para dentro da igreja. Assim como seu burro, Nicolau – um nome bíblico que significa “o que vence junto com o povo” -, Zé pôde cumprir sua promessa; não sozinho, mas com ajuda da população que o escolheu como vítima, herói, exemplo.
Cena do filme em que Zé é assassinado pela polícia em meio a multidão.
Vitor Bomfim Lopes é formado em Licenciatura em História pela UEPG, com pesquisas na área de História e Cinema, História e Literatura, História Intelectual, entre outras. Atualmente faz mestrado acadêmico no PPGH/UEPG, onde pesquisa os impactos da política indigenista no Brasil, utilizando o discurso oficial e suas dicotomias com as narrativas dos intelectuais indígenas. É professor, pesquisador, historiador, fascinado pelo gênero do terror no cinema, e, o mais importante, é vascaíno.
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